21 Março 2022
Como muitas vezes ocorre, os sistemas autoritários tornam-se vítimas da sua própria propaganda: depois dos primeiros 20 dias de guerra, já está claro que Putin obteve o efeito contrário.
A opinião é do cientista político italiano Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perugia, na Itália. O artigo foi publicado em Domani, 19-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No fim, o decoupling, o “desacoplamento”, ocorreu: não entre Ocidente e China, como se previa, mas com a Rússia. Isolada nos mercados financeiros e comerciais, Moscou voltou aos tempos da URSS ou talvez piores. A única saída que lhe resta é fazer um acordo com Pequim: em perspectiva, não é um grande resultado para a Europa, mas também não para os russos.
Certamente, será difícil para estes últimos, mesmo que se trate de um dos povos mais resilientes da terra, capazes de suportar quase todas as adversidades. Nunca devemos esquecer essa realidade que a história nos entrega, lembrando também que pelo menos 70% dos russos consideram Vladimir Putin o líder que reavivou o destino de um país em ruínas e o livrou das predações dos ocidentais durante os anos 1990. Se essa é a percepção deles, mesmo que equivocada, não seremos nós, europeus ou estadunidenses, que poderemos mudá-la: isso só poderá ocorrer a partir de dentro, e sabe-se lá quanto tempo será preciso.
De sua parte, Pequim não sabe que atitude manter e permanece em suspenso. Por um lado, está satisfeita com a crise entre Moscou e Washington, que obriga esta última a se concentrar novamente na Europa, deixando de lado – pelo menos por algum tempo – a Ásia.
Ao mesmo tempo, a China pode pôr as suas mãos nos bens russos, pensando em adquirir a baixo custo ativos e participações importantes em empresas de relevância estratégica (gás, petróleo, alumínio e mais). Por outro lado, a irritação chinesa com a guerra russa é demonstrada pela interrupção da nova Rota da Seda terrestre (a linha ferroviária Yiwu-Rotterdam/Londres não funciona mais), da qual muitas linhas passavam pela Rússia e pela Ucrânia, onde, entre outras coisas, Pequim fez muitos investimentos.
Trata-se de um sistema de 78 linhas ferroviárias rumo a 180 cidades europeias, agora bloqueadas. No que diz respeito às mercadorias, é um verdadeiro desastre: até mesmo as maiores transportadoras, como MSC, Maersk, CMA-CGM etc. suspenderam todos os serviços que transitam pela Rússia, seguidas pela UPS, Fedex, DHL ou Bolloré, que por sua vez interromperam os envios terrestres entre a Ásia e a Europa. O decoupling está em marcha.
Em Pequim, estão lutando para superar tais interrupções e decidir quais vias alternativas usar para as mercadorias, a custos obviamente aumentados (e com a desvantagem política de ter que usar essencialmente a rota do Pacífico rumo aos Estados Unidos). O tráfego que passava pelo Mar Negro, pouco relevante, mas essencial para o transporte de grãos, também está conturbado neste momento, e prevê-se a sua total interrupção se o conflito perdurar.
A guerra russa é percebida pelos chineses como um aventureirismo que corta as pernas de uma retomada global que acaba de começar depois de dois anos de Covid. Essa contrariedade saltou aos olhos de todos durante a votação na Assembleia Geral das Nações Unidas: se tivesse realmente se comprometido, a China poderia ter mobilizado uma campanha pró-Rússia aumentando muito o grupo das abstenções, que no fim foram apenas 35, contra 141 eleitores a favor da condenação contra Moscou.
O que Pequim fará agora? Alguns dizem que ela já ofereceu aos bancos russos a utilização do seu sistema de pagamentos internacionais baseado no renminbi (Cips) no lugar do Swift do qual foram excluídos. Na realidade, Pequim não decidiu se vai focar na criação de um sistema paralelo ao do dólar/euro, que ainda predomina.
Em todo o caso, estes tempos não dependem só dela, e consequentemente ela verá o que ocorrerá antes de decidir, até porque a moeda chinesa não é muito utilizada como moeda de troca ou de reserva, não sendo universalmente conversível.
O encontro em Roma entre o conselheiro de segurança nacional estadunidense, Jake Sullivan, e o responsável pela política externa do Partido Comunista chinês, Yang Jiechi, é significativo: ninguém sabe sobre o que conversaram durante as seis horas de encontro, mas é fácil imaginar que as consequências da guerra russa foram a maior preocupação para ambos.
É possível que os estadunidenses tenham aproveitado para explicar quais são as suas condições para manter vivo o atual sistema globalizado, tão caro a Pequim. Na China, sabe-se que o partido transversal antiglobalização (muito fortalecido no quadriênio de Donald Trump) é muito ativo em Washington e poderia aproveitar a oportunidade oferecida pelo conflito russo-ucraniano.
O tema é requintadamente geopolítico: com a guerra, Moscou está se separando da Europa e se voltando para a Ásia, mas arrastando esta última também para longe do Ocidente. Não é isso que os chineses querem, pelo menos não por enquanto, nem nas condições e nos tempos ditados por Moscou.
A querela Rússia-Europa é antiga: do ponto de vista cultural, parece a usual polêmica entre eurófilos e eslavófilos, mas neste caso se trata de uma decisão que transforma o coração europeu em uma Eurásia que poderia dividir o continente precisamente na altura da Ucrânia.
Tal acontecimento transforma a Europa no fulcro do jogo político entre as grandes potências, devolvendo-lhe uma centralidade (não demandada) que o velho continente havia perdido desde o fim da Guerra Fria. A turbulenta fronteira entre Rússia e União Europeia passa pelas terras disputadas da Ucrânia: do seu ponto de vista, a Rússia deixa de recuar e tenta recuperar pelo menos um pedaço daquele que foi primeiro o império czarista e depois soviético.
Trata-se de uma ilusão, uma miragem funesta que está se mostrando letal para o futuro de Moscou. Diante das cidades ucranianas cercadas e bombardeadas, desmoronam os projetos de uma nova Rússia como ator global, que agora se encontra isolada, rejeitada e fortemente culpabilizada.
Autoconfiante demais, a liderança russa cometeu um grave erro de avaliação, interpretando mal a Europa. O agosto de Cabul, as disputas internas na União Europeia, a obsessão migratória euro-estadunidense, o cerco ao Capitólio: muitos elementos levaram os russos a acreditar que o Ocidente já estava no caos, incapaz de evitar o declínio.
Como muitas vezes ocorre, os sistemas autoritários tornam-se vítimas da sua própria propaganda: depois dos primeiros 20 dias de guerra, já está claro que Putin obteve o efeito contrário. Até a Otan, declarada com morte cerebral pelo presidente Macron há menos de dois anos, ressurgiu do seu torpor, além das disputas com a Turquia.
É possível que os russos pensassem que seriam bem acolhidos pelo menos pelos ucranianos orientais, onde os russófonos são a maioria. Mas tal acolhida não ocorreu, e agora Moscou está tendo que enfrentar uma guerra mais longa e muito destrutiva, pela qual é considerada a única responsável.
A unidade da União Europeia foi outra surpresa para os estrategistas russos que podem se consolar apenas com o fato de que os britânicos também caíram no mesmo erro antes deles na época do Brexit. Sob estresse, a União Europeia assume as características de “proteção” dos Estados membros, um privilégio ao qual ninguém quer renunciar.
Diante das imagens dos tanques russos invasores, uma única emoção flui de Lisboa a Varsóvia ou de Copenhague a Roma: a simpatia vai toda para os ucranianos agredidos, aos quais se voltam uma solidariedade e uma acolhida que anula as mesmas regras restritivas que a União havia assumido.
A onda emotiva passará, mas o ódio contra a Rússia permanecerá por muito tempo: não será fácil esquecer as responsabilidades de quem pôr em sério perigo a paz europeia. Por isso, uma certa parte da opinião europeia inicialmente apoiou o envio de armas à resistência ucraniana, embora depois tenha se concentrado no pedido de trégua justamente pelo perigo de o continente ser envolvido em uma guerra total com a Rússia, o que ninguém quer.
De um ponto de vista estratégico, algo talvez mudou para sempre: contrário às armas nucleares, o Japão quer a bomba atômica; tradicionalmente zelosa da sua neutralidade, Suécia e Finlândia são tentadas pela Otan; a Suíça também parece estar abandonando a sua histórica imparcialidade; e a União Europeia decide se armar.
O fato mais marcante é o rearmamento alemão: a guerra de Putin está mudando os equilíbrios em total detrimento de Moscou, embora, em curto prazo, pareça que o conflito sustentará o poder do líder russo. Tudo isso também prejudica a China, que não havia previsto tal cenário (nem o despreparo militar russo): será mais difícil e arriscado para Pequim fazer uma voz grossa em outros quadrantes (veja-se Taiwan, mas não só), se não quiser acelerar esse processo de desacoplamento que não lhe convém.
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Rússia se separa do Ocidente e arrasta a China junto. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU